O equilibrio solta as palavras...

No cimo, era frio mas espectacular ao mesmo tempo.
São quase 10:00 da manhã, ajusto o "quicklace" das velhinhas salomon e troco as duas camisolas que trago vestidas por uma simples t-shirt de manga curta. A temperatura está mais quente  se comparada com a dos últimos treinos. No estacionamento paralelo ao do meu carro, mais três corredores ultimam os preparativos para a saída. Entre eles está um com quem me cruzo de forma mais ou menos regular na serra, Armando Teixeira, uma estrela nacional do trail-running com grandes resultados internacionais em provas como Ronda dels Cims, Tor de Geants ou Mont Blanc.

 Cumprimentamo-nos.

Eles dirigem-se de imediato para o acesso á serra enquanto eu vou beber o meu café expresso no Café do Miguel, rotina que dificilmente dispenso. Depois, quando eu próprio me encaminho para as serranias já não avisto ninguém.

No ponto de partida hesito um pouco, examino os trilhos que sobem á direita da minha posição que demoram menos a chegar ao cume, mas que são muito mais inclinados, optei pelo mais dificil e que segue por uma zona que não conheço muito bem. Sei que serve de acesso a umas antigas minas do tempo em que os romanos aqui exploravam o ouro. Deixaram imensos buracos de enormes dimensões e é preciso ter muito cuidado para não cair num deles.

A subida decorre com a normalidade possível, sei por experiência própria que preciso de cerca de três quilómetros para normalizar o cárdio, mas aqui, o arranque a frio nesta inclinação torna as coisas dificeis. Agora, com cerca de metade da subida feita procuro a continuidade do trilho, o mato no inverno expandiu-se tornando dificil a minha percepção. Sigo por um carreiro que é apenas uma vaga linha pelo meio do tojo mas cerca de duzentos metros depois tenho de voltar para trás, está bastante claro que não posso seguir por aqui, de resto, sabia que este caminho me era desconhecido pois uns metros atrás tinha passado por um desse incríveis buracos que me era totalmente desconhecido. Voltei para trás preocupado por ter de correr o risco de passar outra vez pelo perigo latente que representava aquela antiga escavação. Escorregar ou tropeçar e cair ali seria o fim da linha. Sei, por experiência própria de alguns avistamentos como o de hoje e de relatos de outras pessoas, que esta serra parece quase um queijo suiço, mas é ridiculo como um trilho em que mal cabem os meus pés possa fazer fronteira com um poço tão profundo sem qualquer indicação ou protecção. Passei sem incidentes e depois até acelerei um pouco para me afastar daquele perigo eminente. Procurei outro caminho e rezei para que fosse mais tranquilo. Aqui no meio da mata estava protegido da brisa e o suor escorria de forma abundante pelo rosto. Aliviado, cheguei finalmente ao topo por um ponto que não esperava, fruto dos "erros de navegação" durante a subida.

Tomei uma trajectória que era uma volta larga e descendente até um cruzamento conhecido sabendo que lá me esperava uma nova subida com elevado grau de dificuldade embora não muito prolongada. Esse é um "defeito" destas serras, não há subidas fortes muito longas, é preciso repetir, repetir, repetir. Obriguei-me a correr rampa acima até não conseguir mais, depois, uns passos e voltar a correr logo que o batimento cardíaco permita. Novamente no cimo, afasto-me daquele "epicentro" em direcção ás antenas de comunicação optando pela "solução" mais dificil entre duas, hoje era para castigar os gémeos.

 Aqui no descampado elevado já não era uma brisa que se sentia, mas sim um vento gelado vindo do norte. Para quem estava com a camisola bastante molhada, isto não era de todo agradável. Desci de forma abrupta cerca de duzentos metros de altitude por uma corta fogo quase vertical e depois fui descendo mais um pouco lentamente até um local em que se inicia um troço que aqui na serra todos conhecem por "elevador", pois a subida forte e técnica é imterrompida duas vezes por pequenos patamares horizontais.

caminho difícil, mas um bom desafio para as pernas e  sistema
respiratório.
Sensivelmente a meio da primeira etapa parei para olhar para trás, já tinha feito um bom bocado mas grande parte á minha frente estava por fazer. Tirei uma foto e veio-me á mente uma situação em que 99 cientistas isolados numa base de pesquisa no polo norte, depois de permanecerem mais de uma ano a ver apenas neve e gelo ou pequenas coisa construidas pelo homem, receberam uma visita no Natal de um outro cientista que levou 99 pequenas pedras e deu uma a cada um deles. Todos ficaram a olhar para a pedra rebolando-a entre os dedos, tomando-lhe o peso, sentindo-lhe a textura, há quanto tempo não viam uma pedra... Pois bem, aqui não teriam esse tipo de carências.

Com estes pensamentos na cabeça acabei por chegar junto das antenas novamente, não sem antes ter desbravado novamente umas dezenas de metros de mato por ter tomado inadvertidamente uma má opção na última etapa da subida.
Respirei um pouco, e consultei o GPS, eram 11:15 e ao meio dia e meia hora teria de estar no local de trabalho da esposa para evitar que perdesse muito tempo nos transportes públicos. Assim, agora seguiria pelo topo e desceria novamente ao cruzamento para repetir a subida dificil e depois faria descida completa até ao ponto de partida.

Desejoso de sair do descampado elevado e açoitado pelo vento frio, seguia junto a uma fila de eucaliptos novos na margem do caminho, quando uma pequena ave pousou num ramo oscilante e ficou (pelo menos parecia) a gozar o balanço, emitindo o seu cantar afinado.  A ave em causa, pelo que eu sei da espécie, paraceu-me um pouco fora do seu "habitat de conforto" naquele topo ventoso e árido da serra. Estou mais habituado a que permaneçam em jardins ou parques perto das casas. Se calhar também andava a treinar como eu 😊 . Quando me aproximei voltou a deslocar-se um pouco para a frente sempre com o seu piar e observando-me, depois com um voo mais musculado desapareceu do meu radar. Estaria a tentar dizer-me alguma coisa? A incapacidade de comunicarmos naquele isolamento foi ainda mais marcante, pois seria interessante, para ambos, sermos pelo menos capazes de concordar que estava ali um frio mesmo desagradável. Pelo menos ela terá tentado, eu fiquei apenas pela visualização "inteligente".

Repetir, repetir e repetir. Escutar o silêncio. O cansaço descomprime, é fácil esquecer-me
de mim próprio e tornar-me uma extensão do meio ambiente.
Feito o percurso até á base da serra, dirigi-me novamente ao Café do Miguel para adquirir uma garrafa de água. Quando entrei estavam lá os três que encontrara de manhã numa conversa animada. Simpático, o Armando Teixeira pergunta-me se o treino correu bem, aceno que sim e afasto-me até uma mesa. Pouco depois sairam deixando votos de bom fim de semana. Pedi a água, outro café expresso e dei uma vista de olhos rápida no jornal. A dificuldade extra que imprimi ao exercicio de hoje, aliado ao facto de ter de acabar um pouco mais cedo, não me deixou pelo menos fazer os 12 quilómetros do costume, mas foi um bom treino e foram também umas horas afastado da "cacofonia" do quotidiano da cidade, dos telefones, das filas de trânsito, etc.  Regresso sempre a casa com um equilibrio espectacular proporcionado pelo silêncio da serra e pela meditação que decorre, quase de forma automática, do facto de correr sózinho por estes montes.

Para um corredor que procura treinar para provas de longa distância e baseado na minha experiência pessoal, existem três factores que são um forte handicap: O trabalho, a família e o clima. Ajustar estes aspectos, (principalmente os dois primeiros) e o tempo livre para treinar é uma tarefa ardua. No próximo sábado vou ter de deixar de tomar o pequeno-almoço com a esposa e chegar mais cedo á serra  para fazer pelo menos o dobro, tanto em distância como em desnível positivo, isto se nada se atravessar no meu caminho estragando-me os planos. Vamos ter fé... 😉

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